Sentimentos descartáveis

Vivemos num tempo contemporâneo em que emoções se mesclam com questões sociais relegadas a segundo plano, frente a um móvel em direção ao mundo de ausente consideração ao essencial.

26 NOV 2018 · Leitura: min.
Sentimentos descartáveis

Como lidamos com as emoções e valores sociais na sociedade de hoje? Não é difícil observar a comunicação entre questões sociais e culturais da vida cotidiana e as questões subjetivas e individuais do sujeito oriundo da sociedade contemporânea. Haja visto que temos uma cultura de consumo que é fruto e produtora de comportamentos num contexto no qual os objetos de consumo tornam-se obsoletos muito rapidamente. E, desse modo, seguem as emoções em torno desse mecanismo de consumo. Portanto, como lidarmos com nossas emoções e sentimentos frente a essa nova configuração de valores sociais então atrelados a uma relação de franco consumismo e descartabilidade?

Temos em nossa sociedade uma premência pelo novo e, assim, logo descartamos o velho cujo destino final torna-se uma questão importante a ser observada nessa breve leitura. Pois, somos capazes de descartar objetos que vão diretamente para a lata do lixo sem nos darmos conta da importância da reciclagem, por exemplo. Afinal, somos um país continental que enfrenta enormes desafios em face do destino do lixo que, em sua maioria, é direcionada para lixões que, por sua vez, trazem grandes prejuízos a natureza e ao meio ambiente. Nesse ponto, cabe perguntar: será que não estamos fazendo a mesma coisa com nossos sentimentos e consciência?

A partir desse questionamento, é possível observarmos que convivemos, desse modo, com várias incongruências promotoras de desastres "ambientais e ecológicos" em diversos setores da vida cotidiana. Pois, do mesmo modo que não fazemos a reciclagem adequada do lixo, também tratamos a vida humana e suas intrincadas costuras de forma pouco inteligente ou menos proveitosa para nós e para o outro. Pois, torna-se bem fácil jogar a sujeira para debaixo do tapete e se esquecer do conteúdo que se avoluma em plena sala de estar do que vir a enfrentar a tarefa de lidar com o problema em questão. Sendo assim, corremos o risco de em um determinado momento virmos a tropeçar no obstáculo criado por nós mesmos e, assim, termos uma queda e um sofrimento completamente indesejado, mas fatidicamente construído por nós.

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Muitas questões sociais passam por esse caminho de recalcamento e acumulação de detritos indefinidos que, de uma forma ou de outra, acabam vindo à tona por meio de um sintoma que se reflete em um comportamento indecifrável à primeira vista. Nesse sentido, vivemos no dia a dia buscando soluções em satisfações que possam contrabalançar e nos fazer esquecer daquilo que de fato nos incomoda e que não damos a devida atenção e ouvido. Desse modo, em contraponto a insatisfação e o desprazer, podemos então optar por algo que nos dê uma satisfação momentânea que, por sua vez, acaba por se mostrar efêmera e insatisfatória, tornando-nos então compulsivos consumidores de satisfações insaciáveis que visam preencher um espaço vazio criado por aquilo que não quer calar debaixo do tapete.

Por outro lado, no que tange ao contexto social, é possível dizer que, em alguns casos, lidamos de igual modo no âmbito coletivo por meio de um recalcamento. Seguem nesta direção alguns exemplos como no caso do lixo que produzimos e não atuamos na sua seleção e pré-reciclagem que deveria ser direcionada a uma coleta igualmente seletiva. Ou então, no modo como lidamos com questões sociais sensíveis que repercutem na vida social que se traduzem na postura de negação da pobreza alheia ou, ainda, da degradação da dignidade de presos em péssimas condições em que só se faz recrudescer a violência e o crime que acaba por se extravasar extramuros prisionais. Pois, tais aspectos embora pareçam não nos afetar, revela nossa indiferença e falta de preocupação com questões que, de certa forma, acabam sim nos afetando contundentemente de maneira direta ou indireta.

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Portanto, é possível dizer que somos responsáveis, de algum modo, pelo conjunto de circunstâncias que nos rodeiam. No entanto, por outro lado, também é possível dizer que não temos controle sobre a ação advinda do outro que é responsável por seus atos, mas temos, contudo, controle de uma coisa: sobre o que faremos com aquilo que nos chega e nos acontece, ou seja, podemos, nesse caso, analisar, considerar pontos favoráveis e pertinentes, desconsiderar outros ou até mesmo descartar toda essa missiva produzida pelo outro ou por circunstâncias que, a partir de nossa atenta observação e análise, se tornou impertinente e, por sua vez, passível de ser devidamente descartada. Trata-se de uma filtragem que se assemelha a reciclagem do lixo em que seu produto se transforma em nova matéria-prima a ser renovada em outros novos produtos e derivações de resíduos adequadamente tratados.

Sem medo de errar, pode-se dizer, portanto, que podemos sim descartar coisas a fim de nos livrarmos daquilo que não tem serventia, mas temos de fazê-lo com bons critérios e atenção, buscando, assim, produzir a elaboração necessária para seguirmos adiante. Pois, desse modo, estaremos fazendo uma substituição de algo velho por algo novo que advirá de forma espontânea como um subproduto da ação pautada pelo devido processo de reflexão e autocuidado que se traduz numa reciclagem subjetiva promotora de uma satisfação mais consistente e realizadora.

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Escrito por

Adriano Andrade Barboza

Graduado em Psicologia pela PUCPR e pós-graduado em Psicologia Clínica: Abordagem Psicanalítica pela mesma universidade. direciono-me para a grande área da Psicologia e da Filosofia e ao viés psicanalítico. Formação complementar na área de uso abusivo de substâncias pela UNIFESP e USP. Atua como psicólogo clínico em consultório particular.

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Comentários 1
  • Vera Issler

    Perfeito! muito reflexivo para mim.

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