Entre o solidário e o solitário

Mudando uma única letra, muda-se aquilo que queremos dizer. Por mais que pareçam semelhantes, solidário e solitário dizem o oposto da sua similaridade verbalizada...

27 MAR 2020 · Leitura: min.
Entre o solidário e o solitário

Mudando uma única letra, muda-se aquilo que queremos dizer. Por mais que pareçam semelhantes, solidário e solitário dizem o oposto da sua similaridade verbalizada. Ao mesmo tempo próximas, ao mesmo tempo opostas. Neste texto, procuro pensar sobre tal paradoxo.

Não é só uma letra que difere o solitário do solidário, entre essas duas palavras existem diferenças semânticas, diferenças culturais e interpretativas. Segundo o dicionário Michaelis no adjetivo solidário, encontramos aquele que está disposto a ajudar em prol do bem coletivo, desta forma, aponta para a possibilidade de mudança incumbida no sujeito que se solidariza pelo bem comum. No adjetivo solitário encontra-se a solidão, aquele que vive só, que se afasta do convívio social. Mas entre os dois adjetivos há algo para além da diferença significativa.

Em alguns países, tribos e comunidades, prima-se por ações solidárias, no pensamento em grupo, no coletivo acima do individual, no interesse social. Já em outros, o valor do crescimento individual é colocado como bem a ser alcançado, dando espaço para o advento do ser solitário.

Na questão interpretativa, temos uma grande cadeia de significações para estes dois adjetivos. Para o solidário, podemos ouvir de pessoas adjetivando-o como algo bom, necessário nos dias atuais, como sinônimo de altruísmo. Assim como podemos ouvir, que ser solidário pode comprometer o crescimento pessoal, que é necessário pensar no particular para depois ir para o coletivo. Para o solitário também há grande gama de significações. Para alguns o solitário é visto como algo negativo, relacionado a um ser deprimido, triste, de alguém ranzinza, individualista etc. Já para outros, o solitário tem que ver com um momento necessário, como uma escolha de um momento de si consigo mesmo, relacionado como algo prazeroso.

Dentro de tantas diferenças, penso se há possibilidade de aproximá-las para além do fonética. Existe um solitário que se solidariza? Ou um solidário que se "solitariza"? Em meio ao caos pandêmico que atualmente vivemos, estamos aproximando o solitário do solidário, afinal, o fato de ficarmos em casa, de convivermos mais de modo solitário, se faz necessário para o social, como um ato solidário. De certo, tal ação de aproximar (aproxima + ação) dois adjetivos opostos, pode causar estranheza para aqueles que habitualmente vivem se relacionando com apenas um destes.

Para os que se solidarizam normalmente, o fato de ficar em casa, pode ser angustiante, visto que o viver em sociedade toma um espaço significativo em suas vidas. Para os que costumeiramente se "solitarizam", a situação pode não ser tão ruim, ao menos que o solitário tenha que estar com mais alguns membros compartilhando o mesmo espaço neste momento de quarentena. Em ambos os casos, destaco que o aproximar daquilo que se difere do habitual, está gerando reações e sensações das mais diversas possíveis, alguns aproveitam o momento solitário para fazer algum hobbie, já outros se desesperam desejando o fim deste cenário. Na ação de aproximar o solidário do solitário, nos deparamos com a estranheza, com o infamiliar.

Segundo Freud (1919/2019), quanto mais a pessoa se orienta por aquilo que está à sua volta, ou seja, o familiar, menos atingida pelo infamiliar ela será. Ao passo que o infamiliar pode ser assustador caso esta venha a confrontá-lo. Familiar e infamiliar são de certa forma, duas faces da mesma moeda, o infamiliar se une ao seu oposto numa relação ambivalente (In+família). E talvez seja isso mesmo que estamos lidando atualmente, com aquilo que nos é íntimo (familiar), mas que aponta nosso olhar para algo (des)conhecido. A incerteza de não sabermos quanto tempo durará esta aproximação forçada do solidário com o solitário nos faz permanecer confrontando tal infamiliar, causando angústia. Situação esta que traz a reflexão: como lidar com tal aproximação com o infamiliar de modo que cause menos sofrimento?

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Escrito por

Túlio Bueno R. Martins

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Bibliografia

Freud, S. (2019). O infamiliar [Das Unheimliche]–Edição comemorativa bilíngue (1919-2019): Seguido de O Homem da Areia de ETA Hoffmann. Autêntica.

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