Divã: Para além de um móvel qualquer

Retornando a Freud, o criador da psicanálise, temos registros de que ele não suportava ser olhado fixamente por seus pacientes por muito tempo. Percebia que possíveis expressões faciais pudessem aparecer involuntariamente em seu semblante dependendo do que o paciente falasse, o que atrapalharia na associação livre - no falar livremente o que vem à cabeça, sem censuras, por parte do paciente.

Portanto era comum Freud negar um tratamento face-a-face. Para ele o divã era o protetor da neutralidade. Hoje em dia sabemos que não é indispensável o uso do divã. Que a neutralidade pode existir também numa psicoterapia face-a-face. Porém não podemos diminuir as descobertas teórico-práticas que Freud foi revelando com sua trajetória analítica com o auxílio desse móvel, tão emblemático, que é praticamente impossível dissociar sua imagem da psicanálise. O divã segue relacionado a psicoterapia de orientação analítica na nossa cultura popular até os dias atuais.

É muito mais do que uma peça de mobília comum. É o ponto de partida para uma jornada de autoconhecimento e cura interior. Com sua posição convidativa, deitado sobre ele, o paciente é convidado a se libertar das amarras e possíveis repressões que criamos ao falar de nós, olho a olho com alguém. Ali, deitado no divã, habita a possibilidade de uma entrega pra uma experiência de introspecção singular.

Serve pra todo mundo? Não. Tem gente que vai se sentir melhor estando frente-a-frente com o analista. Já outros, vão encontrar no divã um facilitador pra falar das suas questões. Como psicanalista, não posso negar as experiências muito positivas que vivi com pacientes ao usar o divã.

Muitos ainda relatam estranheza antes de se experimentarem. Questionam como seria alguém estar te observando e você não observar essa outra pessoa. Ou até como lidar com o silêncio e os questionamentos do que o analista estaria fazendo ou pensando fora do seu campo de visão. Para além das fantasias que podem rondar a mente do paciente de como seria usar o divã, afirmo que apenas se pondo a disposição para usar essa mobilia, tão falada e por vezes temida, que poderemos ver de que forma o deitar nela e falar livremente vai repercutir no teu tratamento. Decidir voltar pro face-a-face sempre vai ser uma opção possível. Desta forma, deitar no divã não precisa ser uma decisão irreversível.

O leitor pode ainda pode se perguntar quais benefícios seu tratamento psicoterápico poderia ganhar com o uso desse móvel.

No divã reside a liberdade da livre associação. Essa pode ser vivida também no frente a frente, mas para muitos deitar nele vai favorecer muito mais esse livre associar. O paciente vai conseguir falar com mais facilidade, refletir consigo mesmo com menos influência do olhar do analista.

E por deixar as palavras fluírem com mais facilidade, tanto o analista quanto o paciente conseguem ter acesso a conteúdos inconscientes mais profundos.

Por isso, traumas e conflitos, antes ocultos, podem ser trazidos à luz, mesmo que ainda muito brutos, sem um total entendimento.

Mas já é um começo, porque permite que sejam trabalhados e entendidos no decorrer do tratamento.

Então imagine um lugar onde você pode abrir sua intimidade sem receio de julgamentos?

É o que o divã proporciona. Sem contato visual direto com o analista, o paciente pode se sentir mais à vontade para contar e explorar seus sentimentos mais intensos sem constrangimentos.

E isso a experiência de deitar e ocupar esse local de fala e escuta diferenciado pode ter um potencial transformador para muitos pacientes.

O convite pode ser feito pelo analista ou mesmo o analisando pode propor se experimentar nesse local de fala e escuta.

Você já experimentou um tratamento psicanalítico em que pudesse fazer o uso do divã?

Referências:

FREUD, S. Sobre o início do tratamento. In: ______. Edição Eletrônica das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XII, 2000.

KRÜGER, L. Perspectivas de escuta e a poética da psicanálise. 1. ed. São Paulo : Blucher ; Artes & Ecos, 2023.

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