A dissolução do eu e o retorno ao informe como forma de recriação de si

O homem se destruirá um dia? Ou a pergunta correta seria: O homem se transformará um dia, autorando assim, talvez, o que poderíamos chamar de “uma nova espécie”?

16 JUL 2018 · Leitura: min.
A dissolução do eu e o retorno ao informe como forma de recriação de si

O homem se destruirá um dia? Ou a pergunta correta seria: O homem se transformará um dia, autorando assim, talvez, o que poderíamos chamar de "uma nova espécie"?

Espécie esta, não criada por um ser divino ou mesmo como um resultado de um processo evolutivo externo a si, como na filogênese (para mencionarmos rapidamente, aqui, as duas teorias que mais influenciaram a humanidade ao longo dos tempos – a criacionista e a evolucionista), mas sim, criada pela necessidade de ressignificação ao defrontar-se com a realidade que lhe fora determinada biologicamente. Portanto, determinada culturalmente. "Puseram-me assim no mundo"; "eu não me escolhi"; "eu não sou meu corpo", talvez sejam questões que perpassem o conteúdo inconsciente do sujeito em conflito com sua própria identidade corpórea.

É por esse motivo, talvez, que Vladimir Safatle, comentando a obra de Cindy Sherman, uma fotógrafa californiana, diz que na "dissolução do eu há um confronto com o informe". (2006, epígrafe do artigo: O que vem após a imagem de si). Uma voz insistente e estridente, porém inconsciente, traz a inconformação do sujeito com o fato de que este não participou do processo criador de si.

Visto que, depois da evolução de sua consciência através do domínio da linguagem e do pensamento, o sujeito passa agora a ter a ideia de soberania de si, algo que há tempos era atribuída apenas aos pais, ao Outro (grande Outro) e ao Transcendente.

É provável que Michel Foucault, quando diz: "Pode-se apostar que o homem desaparecerá, como um rosto de areia desenhado no limite do mar" (apud, Safatle, O que Vem Após a Imagem de Si?, 2006), estivesse nos dando um vislumbre do futuro da humanidade. Ao que comenta Safatle: "Assim, dissolver o Eu enquanto potência expressiva significaria reconstruir a possibilidade de algo parecido a uma experiência não-narcisista de objeto."

Estaria ele nessa expressão dizendo que dissolver o Eu seria uma depreciação de si, apenas? Ou tanto Foucault quanto Safatle estão corroborando com a ideia de que o homem 'desaparecerá' ou 'processa sua dissolução', tendo em vista o processo de recriação do Si mesmo?

Analisando um pouco mais o que diz Safatle, o qual afirma que a arte contemporânea tenta estar um passo a frente do que vem a ser a constituição do Si desprovido de Eu e fala que há "regimes de despersonalização em operação na produção artística contemporânea". Para tanto, enfoca o trabalho da fotógrafa anteriormente mencionada, a Cindy Sherman, cujo primeiro trabalho intitulado, "Untitled Film Stills" (1977-1980), onde Sherman problematiza a relação da identidade com a imagem corporal.

Tirando fotos de si mesma, como réplicas de uma sociedade consumista. Tudo para responder a algumas questões cruciais em que se transitam os temas da corporeidade, imagem e ipseidade, como: "o que é meu no corpo?", "o que significa subjetivar o corpo? Teríamos como responder a essas perguntas até mesmo pela ideia que viemos traçando até agora, no que ser refere à singularização do corpo como forma de demarcação dos limites do Eu, mas essa tarefa mesmo a essa altura não passará de meras conjecturas.

Portanto, melhor é continuar no discurso do que vem a ser o corpo próprio, que conforme o conceito de Safatle é a questão mais delicada da estrutura narcísica. Podemos então deduzir que seja por isso que não há como interpretar e entender o trabalho de Sherman senão pela completude das fotos dos seus trabalhos, o que Safatle chama de 'cadeia significante produzida pelo conjunto'(Safatle, 2006).

Podemos começar a entender a influência da arte contemporânea no sentido de ser um reflexo ousado, um retrato e como se deram as configurações processuais do Eu, já nos anos 70 com Sherman, representando as sociedades de consumo de sua época e que prosseguiu nesse norte guiando os outros trabalhos da artista. A mera imagem de si, de um auto-retrato como impressão do Eu, não seria nada se tal esforço não fosse 'para e pelo Outro', como diz Safatle.

Entretanto, mesmo sendo essa a intenção inicial, ela não perdura e deixa de refletir o 'corpo próprio' de Sherman, visto que essa qualificação passa a ser inexistente no sentido de continuidade, onde a criação de imagens de Si seja, atribuir-se a condição de objeto do desejo do Outro, e portanto, deixa de ser próprio esse corpo, e sim, do Outro. Mas até onde deve-se assumir tal papel? Não poderíamos estender esse papel de apenas ser objeto de agrado do Outro por muito tempo.

Se sairmos do período em que Sherman representava nessas fotos o estereotipo dos anos 50, e olharmos para a atual conjuntura contemporânea, talvez não possamos mais dizer que esse investimento é para e somente pelo outro, visto que as formas de singularização de hoje se destacam pela influência não só mais artística, embora esta ainda tenha grande influência em certa camada social, ou pelo menos retrate nossa contemporaneidade, mas hoje, com os adventos tecnológicos fica difícil observar todos os movimentos de energia libidinal que antes era apenas tácito, através da arte, da música e de outros meios de comunicação indireta, e hoje explicito.

Basta um pensamento criativo e um clique e todo sonho e fantasia vira realidade à sua frente. Estaremos então atravessando uma ponte em que de um lado está a dissolução do Eu, e de outro, a virtualização do Eu, quer seja através da rede de computadores, quer seja através da virtualização de Si mesmo, por meio das autorações corporais.

Voltando ainda ao artigo de Vladimir Safatle, seria esse processo o que ele se refere como "multiplicação de máscaras e de personas a afirmação de uma subjetividade enfim liberada do Eu unificador e capaz de gozar da plasticidade de seus mascaramentos"?

Nos anos 70 o feminino mascarado, hoje o corpo, sem gênero definido, ipse do outro, e agora um sujeito virtual, em potência e em realidade, no sentido de satisfazer suas próprias vontades e prazeres sendo ou se dispondo a ser objeto do desejo do Outro, ou não, pois há quem possa fazer-se desejo constitutivo de Si mesmo, e autorar sua existência apenas narcisicamente.

O que podemos fazer? São as formas de subjetivação nas quais viemos parar hoje, e que está em estado de contínua construção, dissolução e reedição.

Texto faz parte do Artigo:

A busca pelo ideal de felicidade, através das novas formas de ressignificação corporal, publicado na Revista Humanae da Faculdade Esuda, 2013.

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Escrito por

Paulo Sérgio A. Martins

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