Somos criações de nós mesmos

Somos criações de nós mesmos, e a qualidade do produto está intimamente ligada à da mão de obra e matéria prima.

1 MAI 2017 · Leitura: min.
Somos criações de nós mesmos
O problema, então, que a raça humana, assim como cada indivíduo, tem que resolver é o de nascer. Nascimento físico, se pensarmos no indivíduo, não é de forma alguma um ato tão decisivo e único quanto parece¹.

A "revolução evolutiva" que os nossos ancestrais Homo erectus iniciaram assumindo o bipedalismo e cozinhando sua comida ainda tem suas consequências depois de centenas de milhares de anos. Ao conseguir mais calorias em menos tempo para alimentar seus cérebros gradualmente famintos, tendo mais momentos livres da luta pela sobrevivência, o gênero Homo abandonou cada vez mais uma vida determinada e se jogou nas incertezas e indefinições além da natureza. Esse nascer de nossa espécie ecoa até os dias de hoje na vida de cada indivíduo.

Abandonamos a imediaticidade, e nossa relação com o mundo passou a ser mediada por elementos que construímos culturalmente. Ao cruzar a fronteira do autoritarismo da adaptação instintiva, ficamos expostos, desamparados, sem aparatos prévios que nos auxiliassem trilhar existência humana, tal qual um recém-nascido.

"Não se nasce mulher, torna-se mulher". Essa frase de Simone de Beauvoir tão criticada pela mentalidade conservadora se configura como verdade para toda a nossa espécie. Com muito respeito, me aproprio e digo: não se nasce humano, torna-se humano.

Os outros animais parecem já terem as ferramentas necessárias para sua vida, mesmo que alguns demorem mais que os outros para desenvolvê-las. Quando vemos um indivíduo adulto de uma espécie não-humana, geralmente temos um exemplar que desenvolveu suas potencialidades, adquiriu aptidão para realizar os comportamentos necessários para a manutenção de sua vida, e caso o comparemos com seus pares, provavelmente haverá pouca variação.

E no caso de nós humanos? Seria possível encontrar um espécime que representasse toda a espécie em suas potencialidades e comportamentos? O que seria um ser humano adulto apto? Haveria alguma aptidão humana que caracterizasse todos nós?

Segundo Leontiev, algo distintivo dos humanos é a "aptidão para criar aptidões". Somos especializados em criar novas habilidades, nossas e de outros, já que também nos apropriamos do que nos cerca e damos a tudo novas funções. Isso é algo que não se restringe ao ambiente, pois modificamos nossos cérebros ultra plásticos para aprendermos novas atividades, nos apropriamos de partes do corpo em nome de linguagens, usamos nossas mãos para diversos fins: comer, falar, digitar, tocar instrumentos, bater, escrever, pintar, etc. É impossível determinar todas as nossas aptidões hoje, seja com relação ao nosso próprio corpo, o corpo dos outros, ou das coisas que nos cercam.

Transformamos o mundo, e nesse processo contínuo e dialético nos transformamos. Consequência disso é que somos criações de nós mesmos, e a qualidade do produto está intimamente ligada à da mão de obra e matéria prima. Por isso a importância de um ambiente repleto de bons estímulos, e aprendizagens que proporcionem uma mediação construtiva com o que nos cerca.

Nessa cruzada para modificar tudo corremos o risco de nos colocarmos como senhores do universo, e pensamos que tudo está aí para nos servir, ou que deveria ser como queremos. Nosso lado narcisista (cada dia mais exagerado na contemporaneidade) nos diz que somos a regra, que nossa opinião tem mais peso e valor que a dos outros. E vamos tocando a vida como se as pessoas fossem como cones numa pista, estáticas, inanimadas, indignas de alguma atenção que vá além da necessária para nos desviarmos delas. Em meio a figurantes medíocres, somos o protagonista merecedor do Oscar, e queremos também o de melhor diretor, filme e tudo mais.

Somente quando entendemos que a "natureza humana" não é única e estática, mas dinâmica, e provida de variedades infinitas é que ficamos menos suscetíveis aos padrões, inclusive os nossos. Da próxima vez que você sentir a necessidade de julgar alguém, lembre-se que há outros 7,5 bilhões de humanos que talvez não concordariam com você. E que cada um deles, também está tentando construir-se da melhor forma que aprendeu.

Não há como padronizar bilhões de pessoas. Para as minorias, o que a cultura apresenta como norma não funciona. O remédio que funciona para um, nem sempre funciona para o outro. É por isso que autoajuda é mera falácia (mas isso é assunto para outro momento).

Os padrões de nossa sociedade se baseiam em "validações consensuais", uma crença ingênua de que, se a maioria das pessoas compartilham da ideia, ela é válida. Esse é um dos riscos da democracia: a verdade é quantitativa. Há todo um histórico de péssimas ideias que foram sendo replicadas historicamente, mas ficamos com a ilusão da liberdade de escolha, quando na verdade só estamos realizando a manutenção do que foi se sedimentando na maioria dos indivíduos. Não necessariamente o que a maioria das pessoas faz é o melhor. Não é porque a maioria compartilha dos mesmos vícios, medos, erros que estes são transformados em virtudes, bravuras ou acertos.

Estamos nos tornando humanos (ou não) a todo momento, tendo como substância o contexto em que vivemos, os bens culturais que assimilamos, as experiências que temos, as escolhas que fazemos. Na década de cinquenta Fromm escreveu:

Temos rádio, televisão, filmes, um jornal por dia para todos. Mas ao invés de nos dar o melhor da literatura passada e presente, esses meios de comunicação, supridos por anúncios, enchem as mentes dos homens com o lixo mais barato, sem nenhum senso de realidade¹.

Hoje também temos as redes sociais, as social medias, que sessenta anos depois seguem a mesma linha. Nos tornamos receptáculos, pouco expressivos, dependentes de aprovação, inseguros, entediados quando ficamos sozinhos com nós mesmos, incapazes de ouvir uns aos outros.

É preciso atenção para a qualidade das coisas que consumimos e transformamos em substrato de nós mesmos. E ter cuidado com coisas que projetamos no mundo para ser matéria prima para os outros. Não nascemos quando saímos do útero, a existência humana é um parto dolorido e complicado todos os dias.


¹Fromm, E - The Sane Society

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Escrito por

Edvaldo Colen

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