Em tempos de Corona Vírus: do desamparo à esperança dos recursos internos

O ser humano nasce desamparo. É um ser incipiente que precisa desenvolver-se. O cenário atual convoca a reativação do desamparo inicial, mas também carrega a esperança dos recursos internos.

10 MAI 2020 · Leitura: min.
Em tempos de Corona Vírus: do desamparo à esperança dos recursos internos

Jean Laplanche, autor psicanalítico, sustentado no texto freudiano, refere que o ser humano nasce desamparado. É um ser incipiente, que se encontra em estado inicial, de desamparo, de desajuda. Para exemplificar, pode-se pensar que ao nascer, possuímos necessidades orgânicas – como a fome – que confirmam nosso despreparo diante de muitas funções essenciais para a garantia da nossa sobrevivência. Transmite-se a necessidade de satisfação de nossas necessidades "básicas" - em Projeto para uma psicologia científica (1895) nomeadas por Sigmund Freud enquanto tensão de necessidade/interesses - através da manifestação da via reflexa, pela agitação psicomotora, pelo choro, o que denuncia a ineficiência do ser humano diante do complexo processo do seguimento de nosso desenvolvimento – seja ele psíquico e físico - sem a imperiosa ajuda alheia, caracterizada pela prioridade do outro em tempos iniciais do processo de humanização.

A "remoção" desses excessos, sentidos assim justamente pela incipiência do pequeno ser, conta com a ajuda do que Freud denomina de ação específica, ofertada por um adulto, constituído psiquicamente, capaz de aplacar as necessidades básicas de sobrevivência, para que a constituição do infant(e) possa prosseguir, mesmo diante do "abismo" que é não conseguir sobreviver por si só. O interessante é poder pensar que em tempos atuais, tempos de corona vírus, também dependemos da ação do outro para que possamos sobreviver: um por todos e todos por um!

Essa cena originária, traz consigo, a representação de um cenário traumático. O pequeno ser fica â mercê do mundo externo e do mundo interno do outro cuidador, que escoa em um primeiro momento pelo polo motor. Mesmo que haja a possibilidade da oferta de ajuda, sabe-se que não há possibilidade da descarga total do "traumático" vivenciado, que segue pulsando sempre, mas que pode, por si mesmo e com a ajuda do outro, dar sentido a alguns estímulos externos que lhe são impostos. É passivo frente às invasões provenientes do ambiente.

Em tempos de corona vírus, encontramo-nos em "estado de desamparo", necessitamos da garantia de sobrevivência, mas ainda não encontramos uma ação específica capaz de aplacar aquilo que invade o psíquico - talvez por hora somente sendo possível escoar pelo polo motor: choro, tristeza, angústia, raiva, indignação, desamparo, solidão, sentimentos referenciados por tantos seres humanos. É possível elevar a hipótese da revivescência da representação do traumático, que não carrega consigo a possibilidade da total metabolização de todo o processo vivenciado. Por outro lado, no que tange a constituição psíquica do sujeito, é justamente a falha tradutiva e metabolizante de todo o processo traumático, em função da incipiência do aparelho psíquico e das intensidades as quais é submetido em tempos iniciais, que fornece possibilidades da instauração daquilo que nomeamos de inconsciente, o que nos dá notícias sobre o percurso da vida psíquica em termos de constituição e sobre como será a estruturação do sujeito.

O ano é 2020, o assunto do ano é a pandemia do Covid-19, do Corona Vírus, como prefiram chamar... A cena atual parece nos reconectar com aquilo que é da ordem do desamparo: tem um vírus que nos ataca, um vírus desconhecido, um vírus externo, para o qual ainda não há vacinas. De outro modo, espera-se que a falha tradutiva e metabolizante tenha proporcionado o seguimento da constituição psíquica, o que marca a possibilidade da existência de recursos internos - que também são adquiridos ao longo da vida e que semeiam diferentes formas de simbolização e metabolização diante do cenário traumático atual - à medida que não se pode encontrar completamente, mesmo que em tempos traumáticos, a mesma incipiência de quando éramos muito pequenos.

São tempos difíceis, sem dúvidas, que nos colocam, parcialmente, frente a passividade já vivida em tempos iniciais - inerente as invasões do ambiente, do outro com suas singularidades e possibilidades em ofertar amparo, aquelas as quais não damos conta pela nossa incipiência. É um vírus que convoca o estranho já existente dentro de todos nós, que nos rememora um desamparo vivido anteriormente, mas que também possui a capacidade de nos mover. Que nossa angústia encontre caminho para que mais enigmas surjam, mais produções sejam realizadas, reverberando maiores condições dentro de cada um, que possam fornecer sentido, compreensão e apaziguamento, à fim de também seguirmos contribuindo com a psicanálise, como Freud produziu em tempos difíceis de guerra, contando com seus recursos internos. A esperança da pandemia talvez esteja calcada justamente na possibilidade de contarmos com a diminuição da nossa incipiência e com os processos simbólicos e metabolizantes adquiridos ao longo de uma vida. De qualquer modo, fica a proposta para seguirmos pensando quais serão os impactos gerados pela pandemia do Covid-19 diante da subjetividade singular de cada um.

Autora: Bruna Bona Goelzer

Psicanalista em Formação

CRP 07/24797

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Escrito por

Bruna Bona Goelzer

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