Sobre o direito de sentir angústia

Tem sido cada vez mais comum a manifestação dos sintomas de transtornos de ansiedade, principalmente em mulheres jovens.

6 DEZ 2020 · Leitura: min.
Sobre o direito de sentir angústia

Se você nunca sentiu, certamente conhece alguém que tenha experimentado algum sintoma fóbico como o ataque de pânico; geralmente caraterizado por um início súbito, com picos de dez minutos e logo após seguido de intensa manifestação física, como taquicardia, sudorese, um medo repentino da morte e uma necessidade de fuga. Os sujeitos tem dificuldade de correlacionar o evento com alguma situação importante de sua vida e como cada nova repetição se parece com a primeira (como se não fosse possível aprender nada com aquilo), a falta de esperança de superar um novo ataque leva à sensação do medo do medo.

De acordo com a OMS, atualmente o Brasil lidera o ranking de pessoas com transtorno de ansiedade no mundo, e 9,3 % correspondem a este nicho, somente da população brasileira (OPAS, 2017).

Ao passo que estes sintomas se popularizam, temos acompanhado também um aumento no número de patologias no DSM – V (manual para profissionais da área da saúde, que lista diferentes categorias de transtornos mentais), indicando maiores possibilidades de diagnósticos e consequentemente medicalizações. Ora, se hoje estamos na quinta revisão deste manual, que possui mais de 900 páginas, e a primeira revisão, criada em 1952 possuía cerca de 130 páginas, a que se deve este aumento significativo?

Se resolvêssemos listar os critérios, certamente não teríamos dificuldade em nos "encaixar" em algum transtorno, de modo que o autodiagnóstico tem sido frequente, bem como siglas como TAG, TDAH, TOC, TEPT tem se tornando termos cotidianos por pessoas que consideram o diagnóstico como parte de sua própria identidade.

Não há dúvidas que o sofrimento psíquico é legítimo e por algum motivo, o diagnóstico tem sido tranquilizador para o paciente. No entanto, Allan V. Horwitz e Jerome C Wakefiel, através do livro "A tristeza perdida" (2010) refletem sobre a trajetória da psiquiatria com relação a percepção da depressão e afirmam que o aumento de prescrições, de artigos científicos a respeito do tema, de antidepressivos e das pessoas que procuram este tratamento, contribuíram para a crença de que houve um aumento da doença. Sendo assim, considerando o aumento expressivo do diagnóstico em si e nem tanto para a legitimidade do aumento ou não da doença, estaríamos tomando o cuidado necessário ao realizar os diagnósticos? Além do paciente, a quem mais interessaria esta demanda, uma vez que a indústria farmacêutica tem se tornado o setor mais rentável do mundo, e está em segundo lugar no quesito de capital concentrado? E por fim, diante de tantas possibilidades de categorização, para onde estamos direcionando o nosso direito de sentir angústia?

Freud formalizou três teorias possíveis para a angústia, e para qual ele também nomeou como ansiedade (1916). A primeira seria um excesso de excitação, sem escoamento apropriado. Desta forma, o sujeito não teria uma forma de canalizar o desejo e este acúmulo de energia provocaria a tensão característica da ansiedade. A segunda, seria por conta do recalque, que na psicanálise, representa um mecanismo de defesa capaz de tirar da consciência tudo aquilo que provoque um mal estar. Nesta linha de raciocínio, este conteúdo recalcado, por não estar "claro" na consciência, estaria "escondido" dentro do inconsciente do sujeito, produzindo tensão. E a terceira, seria a de que ela representaria uma função protetora, por seu caráter indicador de perigo, e que por sua vez, é frequentemente associado ao medo de desamparo, enraizado desde o primeiro trauma de separação entre o bebê e mãe, através do nascimento. Sendo assim, que tipo de conteúdo produziria este mal estar, a ponto de nos deixar ansiosos, hoje?

De um modo resumido, a teoria psicanalítica de Freud foi constituída a partir da base de que o homem, para viver em sociedade, precisou abrir mão de seus instintos sexuais e agressivos, desde o momento em que aprendeu com as figuras de autoridade (geralmente seus pais) cometer qualquer ato que nossa cultura entendesse como imoral, sob risco de serem punidos. Trata-se da introdução da cultura, que ao ser internalizada no sujeito, se incorpora como uma instância psíquica chamada de Superego. Desde então, estes "sacrifícios" são fontes de sofrimento e produção de neuroses, de modo que o mal estar na civilização, como um todo, está relacionado a esta repressão e culpa oriundas da ambivalência de intenções.

Mesmo ponderando a diferença do momento histórico desde o início da criação desta teoria para os dias atuais, hoje, embora tenhamos que reprimir grande parte dos nossos instintos a cada situação que nos desperte impulsos passíveis de consequências negativas, o mundo mudou, se flexibilizou, e no Brasil, especificamente, temos atingido o direito à liberdade de expressão, sexual, tal qual no século XX não era possível.

Junto com novos direitos, os avanços na tecnologia, globalização e influência de grandes mídias alimentaram a oferta de um consumo desenfreado, reajustando os valores da sociedade e redefinindo o ideal de eu, de modo que a compulsão por produtos se reflete em atitudes cada vez mais distantes de uma reflexão.

Segundo o sociólogo Alain Ehrenberg, em "O Culto da Performance" (2010) a sociedade que valoriza o ato e iniciativas individuais, também produz as patologias do ato, ou seja, as que não passam pelo pensamento crítico. No TOC, por exemplo, o sujeito se vê diante de um pensamento indesejável a respeito do futuro, de modo que se vê obrigado a reagir de maneira sistemática, por vezes repetitiva, afim de que algo temido não ocorra. É como se as consequências fossem internas aos próprios atos, levando a uma crença desprovida de sentido racional. Cada repetição do ato produz uma tentativa fracassada de simbolização de um conteúdo, pois é reduzido simplesmente pela ação por si só.

Ora, se outrora as repressões ocorriam pelas restrições de uma cultura mais rígida e hoje podemos gozar de mais liberdade de opções de prazer, e portanto, "menor sacrifício" despendido, talvez tenhamos que considerar que não se trata mais da ordem da restrição, mas sim de uma culpa constante internalizada, na busca de um ideal inatingível, frente a todas as possibilidades e promessas oferecidas. Na tentativa frustrada de "dar conta" a saída para a angústia ocorre através de compensações compulsivas, ou seja, da ordem da ação, do ato e não do pensamento. Em outras palavras, do distanciamento do sujeito consigo.

Diante disto, a clínica psicanalítica se depara com cada vez mais pessoas desconectadas de seus desejos e consequentemente de seus medos, tristezas e anseios. Os sintomas ganham destaque por sua urgência de serem controlados, seja através de medicamentos ou propostas milagrosas, provocando a manutenção de um ciclo ainda muito pautado no ATO, e portanto, desprovido de reflexão e compreensão. Se o sujeito contemporâneo se encontra desconectado de sua própria essência, fruto de uma dinâmica contraditória que oferece todas as promessas de bem estar, mas que restringe o alcance do ideal de eu, temos portanto um sujeito vulnerável a fazer do próprio diagnóstico, sua referência de Si mesmo.

Neste cenário, portanto, a postura do Analista deve compreender, em um primeiro momento, a garantia de um lugar de legitimidade e testemunho para com a existência alheia e todas as particularidades que ela se constitui. Neste lugar, agora disponível para que o pensamento se desenvolva, as angústias passam a se manifestar com todo o seu direito à especificidade de quem sente, respeito à sua individualidade e assim construindo juntos um campo adequado para análise e elaborações simbólicas necessárias

Thais Souza.

Referências Bibliográficas:

EHRENBERG, Alain. (2010) O culto da Performance, Ideias e Letras.

Freud, Sigmund. (1916). Introdução ao narcisismo. Obras Completas de Sigmund Freud. Imago, São Paulo.

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Escrito por

Thais Souza

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