Superando a vergonha e o constrangimento
Sentimos vergonha quando estamos no olhar do outro de modo diferente de como gostaríamos de estar. Podemos sentir vergonha, por exemplo, quando alguém nos flagra fazendo algo indevido.
Sentimos vergonha quando estamos no olhar do outro de modo diferente de como gostaríamos de estar. Podemos sentir vergonha, por exemplo, quando alguém nos flagra fazendo algo que se considera como errado; ou quando queremos ser bem vistos, mas o destaque se dá para aquilo que há de ruim em nós; ou quando queremos agradar alguém, nos atrapalhamos, e cometemos um incômodo; ou quando seu filho diz ao avô que você falou que ele era um velho ranzinza.
A comunicação entre as pessoas não é totalmente direta, clara, transparente e os fatos não são completamente objetivos e evidentes. Cada um vivencia algo único dentro de si que denominamos subjetividade, intimidade. Possuímos internamente um mundo próprio, cheio de pensamentos, memórias e sentimentos. Apesar disso, não somos isolados, como em uma bolha, pois influenciamos cotidianamente as vivências íntimas uns dos outros.
No final das contas há coisas da nossa intimidade que compartilhamos publicamente, outras que compartilhamos com pouquíssimas pessoas e há (muitas) coisas que apenas nós mesmos sabemos, sentimos e fazemos em segredo, na própria privacidade
A Exposição da intimidade: "Com que cara eu vou voltar lá?"
O primeiro motivo que pode nos fazer sentir vergonha ocorre quando, por alguma razão, algo da nossa intimidade é conhecido por outra pessoa. Nesses momentos podemos nos sentir invadidos, expostos, violados, como se estivéssemos literalmente nus para alguém contra nossa vontade. Às vezes, essa informação íntima nos é tomada à força, outras vezes nós é quem deixamos escapulir, "sem querer".
Quando eu tinha nove anos de idade escrevi e guardei uma cartinha para uma menina que admirava. Infelizmente ela foi descoberta e espalhada por um colega, passando de um em um até parar nas mãos da diretora da escola, que me chamou a atenção: "Você não tem idade para escrever essas cosias ou para namorar". Nesse caso, o motivo da vergonha é que se tornou indevidamente público algo que era íntimo - a admiração e o carinho pela menina.
A privacidade e a intimidade, nesse caso, foram violadas levando a um sentimento de grande vergonha. O envergonhamento aconteceu porque no olhar de todos eu era um apaixonado pela fulana e isso era motivo para todos os tipos de importunações. Algo aparentemente simples, mas vivenciado com grande intensidade, pois naquele momento virou piada o que era a informação íntima mais protegida e cultivada internamente.
A vergonha de si mesmo: "Ah, eu tenho vergonha!"
A vergonha é uma emoção fortemente social. Isso significa que para sentirmos essa emoção é preciso que estejamos em sociedade, havendo outras pessoas que nos olham e julgam, fazendo-nos inclusive supor e antecipar o julgamento que poderão fazer. À medida que vamos vivendo em sociedade ocorre um processo de internalização das normas e valores sociais, isso significa que aprendemos, absorvemos e desenvolvemos dentro de nós um senso do que é certo e o que é errado.
Nos primeiros anos da infância os pais e as pessoas próximas representam e apresentam esses valores e normas. Enquanto crescemos e amadurecemos desenvolve algo em nós que chamamos de consciência crítica, avaliadora, julgadora. Sabe aquela voz de quando dizemos a nós mesmos: "Você precisar estudar hoje", "Não use essa roupa, está ridícula"? É como se houvesse dentro da nossa mente outras pessoas e vozes que nos observam e avaliam. Às vezes nos identificamos e acreditamos que são nossas próprias "vozes", outras vezes nos parecem estranhas como se fossem cobranças desagradáveis ou sem sentido.
Se inicialmente sentimos vergonha porque as outras pessoas podem nos olhar de forma diferente da que desejamos que elas nos olhem, agora, com essa consciência crítica nós mesmos podemos nos reprimir e sentirmos vergonha de nós mesmos, ainda que não haja outras pessoas reais envolvidas. Esse é o segundo motivo pelo qual podemos sentir vergonha: a inadequação do que pensamos, sentimos e fazemos comparado ao que nossa consciência crítica diz que deveríamos pensar, sentir e fazer.
Com isso, encenamos verdadeiros teatros em nossa mente. Um exemplo: "Hoje é o dia da minha apresentação de canto; estou ansiosa; e se eu cantar errado; todos irão notar; vão rir e pensar que sou uma péssima cantora; vou morrer de vergonha". Nada disso ocorreu, foi uma especulação, apenas uma cena imaginada, na qual a consciência crítica da pessoa exemplificada fez uma simulação desastrosa. Esse desastre é uma possibilidade real, mas apenas mais uma das várias possibilidades. Nesse caso, simulando a voz de outras pessoas, ela disse a si mesma que poderá errar e que se isso acontecer é sinal de que é uma cantora ruim, merecedora de chacota.
Quando imaginamos uma cena vergonhosa tendemos a sentir, no exato momento da imaginação, a emoção da vergonha. Isso pode dar uma falsa impressão à pessoa de que ela tem vergonha de fazer apresentação, podendo levá-la a um comportamento de timidez, que é o medo antecipado de sentir vergonha ou constrangimento. Sua simulação mental pode fazê-la se sentir envergonhada de ser uma cantora ruim.
Depois da vergonha... "Onde eu enfio minha cara?
Parece acontecer que quanto mais vergonha sentimos durante a vida mais buscamos preveni-la, por exemplo, com isolamento, timidez, retraimento, arrogância, etc. Apesar dessas serem comumente as primeiras reações perante a vergonha, elas não são necessariamente as melhores para evitar o constrangimento, pois quanto maior a barreira à intimidade maior pode ser o constrangimento em relação a cada pequeno detalhe que escapulir.
Outro exemplo: certa moça possui vergonha do próprio corpo e se engajou em se esconder o máximo possível, usando muita roupa e não saindo para clubes; em uma rara ocasião essa pessoa ousou ir ao clube e foi flagrada por algum colega acostumado a sempre vê-la muito vestida; nessa ocasião ele achou isso engraçado e curioso, tirou uma foto dela de biquíni e mostrou para o grupo de colegas da empresa, querendo diverti-los. Muito constrangida, totalmente envergonhada, poderá abandonar o empresa, se esconder dessas pessoas, se isolar, nunca mais ir à um clube ou até mesmo cometer suicídio.
A vergonha é um sentimento que mobiliza muitas coisas nas pessoas. Como nunca estamos certos do grau de constrangimento que alguém poderá vivenciar devemos respeitar a intimidade e privacidade dos outros, não importando quão banal pareça para você. As pessoas que sofrem com a vergonha e com o constrangimento poderão aprender a lidar sozinhas com seu sofrimento, solicitar ajuda profissional ou de alguém em quem confiem.
A vergonha faz com que fiquemos reféns do olhar do outro, nos levando, às vezes, a buscar o agrado ou desagrado de alguém. Isso pode ser natural e parte da convivência social ou, em outros casos, pode ser fonte de grande sofrimento. Quando a pessoa envergonhada não "supera" o sentimento de vergonha, ela se isola no próprio sofrimento, ou sente a tendência de repará-lo socialmente. Por exemplo, alguém poderia esclarecer ao sogro que ele não é um velho ranzinza, ou dizer ao grupo da empresa que não se importa com a opinião deles, ou promover vingança, tentando gerar uma vergonha equivalente à quem lhe fez sofrer. Essas tentativas de reparações frequentemente não ajudam e, às vezes, até pioram a situação.
Vergonha alheia: "Meu Deus, finge que não me conhece!"
Há também um tipo de vergonha popularmente chamada de "vergonha alheia". Trata-se de envergonhar-se pela vergonha que outra pessoa está passando. Por exemplo: a criança está passando vergonha na sala de aula, sendo motivo de piada, porque é a única que ainda não tem celular; o pai se sente envergonhado por ter o filho nessa situação e tenta reparar essa situação comprando um celular para a criança. Em outro exemplo: o esposo bebeu muito e está passando vergonha na festa; a esposa se sente envergonhada e então se esconde, fala para ele ficar quieto ou o leva embora.
A vergonha alheia é um sentimento que pode ocorrer por empatia, compaixão ou por desgosto em estar vinculado a quem se envergonha. Algumas vezes se supõe equivocadamente que a outra pessoa esteja envergonhada ou em uma situação vergonhosa, mas poderá realmente se vergonhar somente quando perceber que as pessoas próximas estão com esse sentimento de vergonha alheia. Nesse caso, com frequência, essa vergonha alheia intensifica a vergonha da outra pessoa, ou mesmo provoca a vergonha onde antes não havia.
A vergonha também tem um importante papel de constranger aquele que faz algo errado, numa tentativa de ensinar o correto e impedir de que cometa o erro novamente. É um efeito importante, mas insuficiente para manter as normas éticas. É importante a internalização dos valores adequados e não apenas a repressão dos inadequados.
A vergonha passa, as consequências ficam...
- Diga "Você deveria se envergonhar!" somente para as coisas essencialmente importantes. Estimular as coisas adequadas que fazemos é mais importante do que combater o que há de errado.
- Caso seja tímido, ou tenha vergonha de fazer algo em público, se desafie aos poucos. Talvez você possa experimentar em um contexto o mais seguro possível e gradualmente ir se experimentando nos contextos mais desconhecidos e desafiantes.
- A família não é o meio que precisa dar todos os "baques de realidade" aos seus membros. Construa um ambiente seguro, positivo para que possam lidar melhor com as vergonhas que naturalmente já passarão ao conviver em sociedade.
- Ofereça ajuda a alguém que precise. Seja aquela pessoa que acolhe ao invés da que aponta o dedo e gera constrangimento. Esteja atento aos limites do humor. Não piore as coisas para quem já sofre;
- A vergonha pode nos paralisar e impedir de conseguir uma boa convivência social. Procure ajuda caso sofra com isso. Há várias formas de se amenizar as vergonhas que possa ter sofrido, além de se preparar para lidar de forma satisfatória com os constrangimentos que vierem a acontecer.
- Promover humilhação na pessoa que lhe humilhou certamente fará um mal a ela, mas isso não necessariamente será convertido em um aprendizado, nem diminuirá a humilhação que você passou;
- É importante utilizar o constrangimento na educação, mas não faça dessa a técnica principal. Você não precisa necessariamente colocar seu filho pelado para que ele compreenda que não deve brincar de abaixar a calça dos outros;
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