Falando sobre ​Alzheimer: o luto em vida

A presença do Alzheimer não afeta somente o doente, mas toda a família. É preciso encontrar mecanismos para lidar com a perda, que assume diferentes formas conforme vai passando o tempo.

19 JUN 2017 · Leitura: min.
Falando sobre ​Alzheimer: o luto em vida

uando você recebe o diagnóstico de Alzheimer de um ente querido, é o momento no qual se conhece o verdadeiro significado da palavra impotência, ficando em evidência as limitações do ser humano diante de uma doença incurável. Quem explica melhor o quadro é a psicóloga Maitê Hammoud.

Ao mesmo tempo em que o futuro parece traçado com a certeza da progressão da doença, as incertezas tomam os seus pensamentos, fazendo com que você tenha que lidar com a angústia de não saber como serão as transformações que, com certeza, passarão. Esta ambivalência gera a sensação de estar vivendo um pesadelo, mas estando acordado.

Surgem os momentos de revolta diante da progressão e degeneração física e mental, apesar dos cuidados e da assistência. A sensação é de estar numa montanha-russa de emoções, sem saber quando será a próxima subida ou quanto durará a próxima queda.

O luto em vida

Por mais doloroso que seja, a morte é de nosso conhecimento e conseguimos nos adaptar e aprender a lidar com a dor da perda, vivenciando o luto por alguém que já partiu, mas a presença do Alzheimer torna tudo mais difícil, intenso e delicado. Contrariando ordens e sentidos, faz real o inimaginável, submetendo a vivência do luto ainda em vida.

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A cada momento é estabelecido um novo vínculo que, em seguida, é perdido. Amanhã já terá mudado e hoje já não se sabe o que sabia ontem. É como se aquele que sofre de Alzheimer se tornasse, a cada dia, uma nova pessoa, ao mesmo tempo em que a outra morre.

O luto é diário: você perde alguém que ainda não morreu. Você perde uma mãe, um pai, um avô, uma avó, um marido ou uma esposa. Perde o papel de filho, filha, neto, neta. Perde a conexão com aquela pessoa que marcou sua vida com tamanha importância, assim como a oportunidade de compartilhar da mesma história, da posição de filho, do abraço forte e do afago terno e carinhoso.

Perde parâmetros, um ombro amigo, os caminhos, o modelo de inspiração de tantos anos e a posição de ser cuidado, para se tornar cuidador. É difícil e devastador aceitar a ideia de que aquela pessoa independente, inquieta, autônoma e sorridente agora constantemente não se alimenta sozinha, quase não fala, mal controla suas necessidades fisiológicas e constantemente torna-se inerte, se perdendo no olhar que mira o vazio e vai perdendo cada vez mais a conexão com sua história, com seu vínculo e com tudo aquilo que a tornava especial.

Sentir-se impotente em não conseguir impedir que uma doença apague a conexão entre o seu mundo com o mundo do outro é doloroso e devastador. E, como se já não bastasse, nesta montanha-russa de altos e baixos, sem indicativos da intensidade que será vivida ou do término de seu sofrimento, além da relação, perdem-se alguns amigos, apoio de alguns parentes queridos, qualidade de vida, expectativas e muitos sonhos, que vão se distanciando tanto quanto o doente vai se distanciando da sua existência e do convívio que antes era tão familiar.

As perdas vão se acumulando e torna-se cada vez mais difícil lidar com o fato da sua fraqueza perante a realidade. Há aqueles que se sentem atropelados por suas emoções, enquanto outros, na tentativa de sobreviver, se distanciam delas, agindo racionalmente, como se usassem um escudo, protegido pelas ações, providências, racionalidades, cuidados e assistência que deve promover.

Não é incomum, ao experimentar desta dor, terminar um dia de trabalho estafante desejando ir para qualquer outro lugar, menos para casa. Na tentativa desesperada de sonhar com a possibilidade de se tratar apenas de um pesadelo, de não ser obrigado a lidar com seus medos e de conciliar o esgotamento físico e mental.

Como se não bastasse, ainda é necessário enfrentar a incerteza de quem irá encontrar, se serão meras preocupações com chaves que se perderam, lembranças do passado ou se do carinho e respeito subitamente se manifestarão as formas de agressividade, sejam no olhar, nas palavras, nas desconfianças ou acusações incabíveis e irreais.

O desespero paira e chega a ser difícil controlar os pensamentos, que clamam pela morte daquele alguém ou por sua própria morte, refletindo a necessidade de cessar o sofrimento, suas fraquezas e esgotamento. Assim seguem os pensamentos da dor, combinados com culpa e sussurros que pedem forças para não desistir, temendo a perda da sua saúde e sanidade que impossibilitariam o cuidar e o viver.

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Afinal, quem cuida do cuidador?

Com tudo isso acontecendo dentro e fora de você, ainda passa pela sua cabeça a possibilidade de não precisar de cuidados? A doença de Alzheimer não atinge apenas o paciente: envolve toda a família na sua complexidade, nas angústias e nas dúvidas não esclarecidas.

Mães, pais, filhos e netos mergulham num processo imenso de aflição, tristeza, incompreensão, desconfiança, cobranças e críticas. Por isso, cuidar da saúde do cuidador torna-se tão vital quanto cuidar da saúde do doente.

Além de grupos de ajuda mútua, onde são compartilhadas emoções e dificuldades, recebendo apoio e a escuta empática de quem partilha da mesma dor, é fundamental que aquele que é afetado indiretamente pela doença esteja em acompanhamento psicológico, para poder contar com o apoio adequado e necessário e, assim, continuamente usufruir de cuidados, conforto e acolhimento neste caminhar.

Apenas através do fortalecimento emocional será possível viver nesta montanha-russa com a probabilidade de alcançar maior qualidade de vida, minimizando os prejuízos. Encontrando equilíbrio é possível adquirir a flexibilidade que se exige quando, apesar das diferenças, é necessário encontrar soluções para o cotidiano onde todos possam dividir responsabilidades e tarefas, impedindo o adoecimento com a sobrecarga física e emocional.

Ao invés de se distanciarem pelos conflitos, ao sentir-se mais fortalecido e amparado, aumentam-se as chances da aproximação entre os familiares, fazendo com que, além da ajuda mútua, encontre no outro um alicerce a partir do compartilhamento das mesmas emoções e perdas. Esta parceria é decisiva na continuidade das vidas afetivas e profissionais dentro das possibilidades, sem que exista privação de prazer e até mesmo de se perder sentido da vida.

É ela também que favorecerá a rotina com o portador de Alzheimer com menos sofrimento. É preciso cuidados para não adoecer junto com o doente, possibilitando a capacidade de lidar com os altos e baixos, favorecendo a rotina de ambos e, dessa forma, aumentando as chances de paliar a evolução do quadro, restringindo a dor do luto daquele que está partindo e permitindo que quem fica continue em posse de seu futuro.

Fotos: por MundoPsicologos.com

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Escrito por

Maitê Hammoud

Psicóloga clínica com curso de aperfeiçoamento em psicanálise, é especialista no atendimento de adolescentes, adultos e terceira idade. Seguindo a abordagem psicanalítica e da terapia breve, atua com foco em transtornos emocionais e comportamentais, relacionamentos interpessoais e questões familiares.

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Comentários 9
  • ANGELA CECILIA DE ALMEIDA BRITTO

    Boa tarde, adorei a matéria, muito bem explicada sobre o alzaimer..Sou filha única, cuidei a minha mãe 7 anos alzaimer. Cuidei dela com muito amor e muita dor, fiquei com ela até último suspiro. Pois tínhamos um relacionamento maravilhoso. Realmentee é um pesadelo, todos os dias vc sabe que está perdendo a pessoa que ama ao poucos!!! Minha mãe era tudo...tudo que eu tinha nesta vida. Ela passou todos os estágios da doença. Me senti muito impotente diante das circunstâncias. Muito sofrimento!!! Irá fazer 4 anos que ela se foi. E ainda estou me repondo emocionalmente. Pois sei que temos uma linha reta, qdo vc nasce e qdo vc morre é o ciclo da vida. Somos finitos. Mas lidar com sofrimento temos muito que evoluir. Pois ficamos perplexos, paralisados e não sabemos até qdo teremos limite para suportar...pois nossos reflexos emocionais ficam praticamente todos fragmentados..

  • maria tereza fernandes carvalho

    Dura e trste realidade , nunca imaginei passar por isto. Gostaria de participar de algum grupo de apoiot on line? Vcs conhecem?

  • virginia mara tecoski

    Maravilhoso texto. A realidade nua e crua. Parabens

  • Armênia lima

    É desesperador...tem dias que tenho vontade de sair andando...a um ano e meio minha mãe tem Alzheimer,pedi as contas do trabalho para cuidar dela...ou era isso ou abrigo. Entrei de cabeca ...trouxe ela para morar comigo e cuidar dela no que fosse nescessario. Mas não é oque pensei...achei que essa demência fosse só esquecimenti,é algo aterrorizante,é inexplicável,é exatamente Luto em Vida.

  • Sheila Jorge

    Meu pai tem alzheimer há 5 anos, tem apenas 65 anos e digo realmente q esta doença é uma montanha russa e q a cada dia vai regredindo mais e mais!!! Realmente é preciso cuidados com o cuidador p não adoecer, minha mãe participa do grupo de apoio aos familiares desta terrivel doença!!!

  • Márcia Pinheiro

    Como faço pra contactar um profissional em Goiânia?

  • Márcia Pinheiro

    Que texto maravilhoso! Eu estou cuidando do meu esposo, e está muito difícil, por mais que eu queira ter paciência com ele às vezes não consigo, sempre ouço falar que o cuidador precisa de um acompanhamento psicológico, sempre achei que eu fosse forte e não precisaria, mas agora estou caindo na real que não vou conseguir sozinha. Sou de Goiânia, vcs poderiam me indicar algum profissional nesta área ?

  • Maria da Graça Machado

    Estou passando por isso é realmente é muito difícil superar todas essas dificuldades.

  • Idinagia

    Boa noite .eu cuido da minha sogra junto com meu marido. E já estamos cansado a luta e grande .minha sogra se encontra na fase final .ja não sabemos mas o que fazer e triste .ver um ser humano morrer em vida.

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