As marcas não se apagam

O texto foi produzido a partir de uma atividade com pacientes esquizofrênicos, em um residencial psiquiátrico.

21 SET 2020 · Leitura: min.
As marcas não se apagam

Hoje, a fotografia está tão presente em nosso dia-a-dia como calçar os sapatos. Tiramos fotos com muita facilidade, tanto de nós mesmos quanto do que gostamos, tornando-as uma extensão da nossa memória, guardando momentos queridos. Contudo, por vezes não valorizamos a possibilidade de capturar imagens e tornamos a fotografia apenas uma ferramenta objetiva, deixando de lado sua capacidade simbólica e subjetiva de auto reconhecimento.

Foi a partir de uma atividade realizada com o intuito de presentear pacientes de um residencial terapêutico que passamos a nos dar conta da importância do retrato, algo tão singelo para nós, mas tão representativo para quem se vê fragmentado em si e na sua própria história.

A finalidade desse texto, não é tratar sobre a praticidade que temos com a fotografia atualmente e o quanto talvez a banalizamos; mas sim, entender, como e por que ela provocou tantas reações e sentimentos dos mais variados tipos, desde surpresa, felicidade e até certo abatimento. A atividade proposta – que era apenas para ser uma mera entrega de brindes fotográficos em uma festa de São João – demonstrou ir além de seu objetivo, isso porque o envolvimento dos pacientes com a criação de seus porta-retratos fomentaram percepções desconhecidas em seu período de tratamento.

O que notávamos era que eles estavam se reconhecendo – e reconhecer-se é da ordem do psíquico. A impressão que tínhamos era que não se viam por inteiro há muito tempo. Alguns diziam: "Nossa, como eu estou velho!"; outros diziam: "Tenho cabelos brancos", "Tira uma foto minha enquanto fumo, para eu ver como fica", "Manda para minha família me ver", "Tira uma foto minha em preto e branco". Havia também aqueles que buscavam um olhar, e assim indagavam: "Fiquei bonito?", "Como que eu fiquei?". Ao término, nós, as profissionais, estávamos convencidas de que aquela não era somente uma atividade para presenteá-los, mas sim, para ajuda-los a enxergarem-se por inteiro, como inteiros, enquanto sujeitos físicos e psíquicos.

A palavra "reconhecer" é carregada de significado e peso, assim como a fotografia. Ambas se complementam, a fotografia não teria sentido se não pudéssemos reconhecer momentos e memórias. Além disso, são palavras de grande valor e importância histórica. O significado de reconhecer é:

"Conceber a imagem de uma coisa, de uma pessoa que revê, reconhecer um amigo de infância. Admitir como verdadeiro, real: reconhecer uma firma, empresa. Distinguir através de certos caracteres: reconhecer alguém pela voz. Analisar detalhadamente, inspecionar: reconhecer um território. Observar ou fazer alguma exploração: reconhecer lugares. Mostrar gratidão: reconhecer um benefício."

Dessa forma, a palavra implica muito mais do que simplesmente reconhecer uma imagem, perpassando desde o real/físico, até o simbólico/representativo. Ela significa distinguir, contemplar sua totalidade; o que permeia a chance de nos enxergarmos como sujeitos donos de uma história, marcas, sentimentos, qualidades, virtudes e imperfeições. Sujeitos singulares e únicos, assim como as fotos presentes em um porta-retratos.

Juan D. Nasio, a partir da contribuição lacaniana, no texto "Estágio do Espelho", escreveu:

"Essa imagem global, essa identificação imaginária, na qual ela se precipita, contrasta com a vida interna do seu corpo, com as sensações perceptivas do seu corpo, com as pulsões no interior do corpo. As pulsões no inteiro do corpo são a vida que pulula no interior, contrastando com uma imagem integrada, unitária, unida, total no espelho." (1999, p. 62)

Pensando na fotografia como imagem do sujeito, contrastada, muitas vezes, no espelho, podemos ter a noção da magnitude dessas reações, principalmente em pacientes esquizofrênicos. Tendo em vista que, nas psicoses, o próprio corpo dos sujeitos acaba não sendo "constituído", e, por consequência, simbolizado, estamos tratando de um corpo que, infelizmente, constitui-se como fragmentado, de forma fragmentada.

No dia da entrega dos porta-retratos, sabíamos da importância da ação executada, mas, em momento algum, compreenderíamos que seria algo tão emocionante tanto para nós, quanto para eles. Algo de dentro havia se conectado com o que estavam vivenciando. O sentimento de alegria quando se enxergavam, talvez como poucas vezes, como inteiros, era algo que representava tamanha ternura e emoção; momentos daqueles que traçam marcas inesquecíveis dentro de nós. Por fim, estava permeado ali, o gesto, o presente, e por último, mas mais importante, a possibilidade de se enxergarem e se reconhecerem enquanto SUJEITOS.

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Escrito por

Marília Gabriela Wagner Psicóloga

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Bibliografia

NASIO, Juan David. Como Trabalha um Psicanalista?. Rio de Janeiro: 1999.

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